29.8.08

da originalidade...




Estes são realmente pensamentos de todo homem
em qualquer tempo e lugar,
não são originais meus;
e se não são de vocês tanto
quanto meus
não querem dizer nada ou quase nada;
e se não são a pergunta e a resposta à pergunta,
não significam nada;
e se eles não se colocam
tão perto
quão distantes parecem,
não valem nada...
(
What Whitman em Folhas de Relva)




Citar vem do latim: citare. Referir ou transcrever (um texto) em apoio ao que se afirma, segundo o Aurélio. A língua que falamos no dia a dia favorece os tagarelas, soneteiros e os que falam pelos cotovelos. Quantas palavras imprecisas, ditas ao vento, são necessárias para descrever o silêncio? “Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar”, sintetizou o filósofo Wittgenstein.

Aforismos e epigramas, máximas e pensamentos, sentenças e ditos memoráveis nos lembram que tudo na vida é por aproximação, da matemática ao amor. E pode crer, “o que hoje é demonstrado, um dia foi apenas imaginado”, como afirma o poeta Blake. Toda citação maior é uma espécie de pensamento lúcido, fragmento condensador de uma possível beleza-verdade, farol que ilumina o mundo em ruínas. A citação é nuvem “onde o sol cala”, como no Inferno de Dante: “No meio do caminho desta vida/ me vi perdido numa selva escura,/ solitário, sem sol e sem saída”.

Jorge Luis Borges era um escritor pródigo em citações. Reescreveu argumentos, lendas e fantasias de outros séculos. No ensaio intitulado “Livro”, Borges anota que, “certa vez, perguntaram a Bernard Shaw se ele acreditava que o Espírito Santo havia escrito a Bíblia. Ele respondeu: Todo livro que vale a pena ser relido foi escrito pelo Espírito Santo”. A bíblia não é nada mais do que um mosaico de citações, sermões e parábolas.

Lima Barreto dizia que “sábio é aquele que escreve livros com as opiniões dos outros”. Shaw diz que “a mais tola das ilusões é a que leva os homens a conceber-se como moralmente superiores aos que têm opiniões diferentes das suas”. Já Pessoa diz que “não ter opiniões é existir. Ter todas opiniões é ser poeta”. Muitos leitores acreditam que os citadores são pensadores originais. Lucrécio achava que ”nada pode ser criado a partir do nada”. Já Andre Gide, por sua vez, diz que, “todas as coisas já estão ditas, mas, como ninguém escuta, é preciso recomeçar sempre”. A citação é uma lembrança do que “poderia-ter-sido”, do “não-mais” ou do “tarde-demais”. “O que não é destino é frivolidade”, diz Ortega e Gasset.

Poetas, filósofos, pregadores e animadores sempre foram mestres em citar o pensamento dos outros. Mas há quem use as sentenças para ter uma visão do mundo ou para simplesmente levar a vida. No entanto, “um fragmento tem de ser como uma pequena obra de arte, totalmente separado do mundo circundado e perfeito e acabado em si mesmo como um porco-espinho”, como muito bem definiu Friedrich Schlegel. Erza Pound, que ditou as regras usadas pelos poetas concretos, era um citador dos tempos medievais, um reinventor dos caracteres (ideogramas) orientais. Vivia com o nome de Confúcio e Bashô na ponta da língua. Já o visionário Nietzsche desenvolveu toda a sua filosofia a partir dos pensadores gregos. Seu pensamento filosófico é uma trama de fragmentos, máximas e relâmpagos. Para ele, “aquele que escreve em sangue e em máximas não quer ser lido, mas aprendido de cor.” James Joyce, em “Ulisses”, afirma que, “depois de Deus, Shakespeare foi quem mais criou”.

Segundo Shakespeare, “a vida é uma história narrada por um idiota, cheia de barulho e fúria, não significando nada”. Machado de Assis diz que, “não se comenta Shakespeare, admira-se”. Mas voltando ao irlandês Joyce, pode-se dizer que a sua obra serviu como fonte de idéias, e ainda recurso estilístico para a construção da obra de Samuel Beckett. Joyce bebeu nas águas profundas da memória de Proust.

Segundo Dino Buzzatti, “todos os escritores e artistas, não importa por quanto tempo vivam, dizem somente uma única e mesma coisa”. “A República”, de Platão, outro exemplo de livro de citações, é uma narrativa, discussão dialética encabeçada por Sócrates a um auditório anônimo. Segundo Goethe, a dialética é um desenvolvimento do espírito de contradição, dado ao homem para que ele aprenda a reconhecer a diferença das coisas.

Michel de Montaigne, autor da sentença que diz que ”filosofar é aprender a morrer”, e inventor do gênero ensaio que vem a ser “uma experiência sentimental do intelecto”, é um mestre em ilustrar seus textos com a fala clássica de Homero, Ovídio, Sêneca. O pensador romano Pompeu é o autor do célebre dístico que diz “navegar é preciso, viver não é preciso”. Esta sentença popular também foi citada por Plutarco e pelo poeta Fernando Pessoa. “E para que poetas em tempos de miséria?”, perguntava Horderlin. Segundo Murilo Mendes, “o sofrimento dos poetas, dos artistas e dos santos torna-se o estrume espiritual da humanidade”. “Deus está nos detalhes”, disse o arquiteto alemão Mies Van de R. e o romancista Guimarães Rosa. “Ao diabo com os detalhes, a posteridade é cega a todos eles”, segundo Voltaire. Para Emil Michel Cioran, “as religiões morrem por falta de paradoxos”. Mas “que melhor dom podemos esperar que o de sermos insignificantes?”, pergunta Jorge Luis Borges. Também não deveríamos esquecer que, “se, na hora da morte de um homem, toda a compaixão dos outros homens se juntasse para impedi-lo de partir, esse homem não morreria”, afirma o poeta César Vallejo. Mas para Maiakoviski, “a morte não é difícil. Difícil é a vida e o seu ofício”.

A citação nos leva a um livro, a um lugar qualquer, a um tempo exato. Desafia a realidade, ensina a ver o mundo com os olhos dos outros e a conhecer as coisas do nosso jeito de ser. “Ser ou não ser, eis a questão”. Freud afirma que “sou onde não penso”. “Nada do que é humano me é estranho”, pensa Terêncio.


Esse era um dos aforismos preferidos de karl Kraus, especialista em citar para ironizar. Um aforismo é a síntese do conhecimento. Kraus diz que um aforismo jamais diz a verdade; ele sempre diz uma meia verdade, ele sempre diz uma verdade e meia.



Achou "bom e original"? Pois, eu também achei. E estou citando, na íntegra, um texto de Pedro Maciel - A Arte de Citar -como uma apresentação do que poderão ver por aqui. Não esperem, leitores, encontrarem nada de muito "original".
Se encontrarem citações muito bem colocadas, apropriadas, matéria e arte de qualidade "re-inventadas", ficarão satisfeitos e obterão, nestas páginas e dos que nelas trabalham, algum proveito.

E aí, sim, será BOM!


Às minhas musas,

Cyber Flâneur*


* Cláudio Rangel: um vivente pensante, nada original, humano 'normal', com a mácula de ser poeta...


Para os mais sensíveis à audição que à leitura de tortuosas linhas - ainda sobre criação, originalidade, releituras de um mesmo tema, obra - após terem apreciado a execução de Beijo Partido pelo próprio compositor, Toninho Horta, em postagem anterior (Le baiser), atentem para a versão da diva Flora Purim:



so(m)bras e mo(vi)mentos


photo-poiesis-graphias


25.8.08

baiser



Couples fervents et doux, ô troupe printanière !
Aimez au gré des jours.
— Tout, l’ombre, la chanson, le parfum, la lumière
Noue et dénoue l’amour.
Épuisez, cependant que vous êtes fidèles,
La chaude déraison,
Vous ne garderez pas vos amours éternelles
Jusqu’à l’autre saison.
Le vent qui vient mêler ou disjoindre les branches
A de moins brusques bonds
Que le désir qui fait que les êtres se penchent
L’un vers l’autre et s’en vont.
Les frôlements légers des eaux et de la terre,
Les blés qui vont mûrir,
La douleur et la mort sont moins involontaires
Que le choix du désir.
Joyeux, dans les jardins où l’été vert s’étale
Vous passez en riant,
Mais les doigts enlacés, ainsi que des pétales
Iront se défeuillant.
Les yeux dont les regards dansent comme une abeille
Et tissent des rayons,
Ne se transmettront plus d’une ferveur pareille
Le miel et l’aiguillon,
Les cœurs ne prendront plus comme deux tourterelles
L’harmonieux essor,
Vos âmes, âprement, vont s’apaiser entre elles,
C’est l’amour et la mort...



innombrable

Le Cœur innombrable - Anna de Noailles (1901)

La Vie profonde

Être dans la nature ainsi qu’un arbre humain,
Étendre ses désirs comme un profond feuillage,
Et sentir, par la nuit paisible et par l’orage,
La sève universelle affluer dans ses mains.

Vivre, avoir les rayons du soleil sur la face,
Boire le sel ardent des embruns et des pleurs,
Et goûter chaudement la joie et la douleur
Qui font une buée humaine dans l’espace.

Sentir, dans son cœur vif, l’air, le feu et le sang
Tourbillonner ainsi que le vent sur la terre ;
- S’élever au réel et pencher au mystère,
Être le jour qui monte et l’ombre qui descend.

Comme du pourpre soir aux couleurs de cerise,
Laisser du cœur vermeil couler la flamme et l’eau,
Et comme l’aube claire appuyée au coteau
Avoir l’âme qui rêve, au bord du monde assise...